domingo

a dor e os amigos

num dia, há 40 graus para derreter em qualquer lugar. uma marcha de galdérias, um desfile de ciclistas nus, uma festa de gays e lésbicas. milhões de pessoas nas praias ao sol tórrido, transportes colectivos apinhados, carros de família em pára-arranca doloroso. num dia, há notícias que não vemos, nem lemos, nem queremos saber. a noite é do demo, na alegria e na bebedeira, no deve e haver de amor-sei-lá-se-é. num dia, somos felizes. no outro acordamos tristes de um sono leve e agitado, e nada do que possámos pensar nos alívia a dor. e como não há dores perfeitas, há alguém que nos liga 'do outro lado', e alguém que nos liga deste a falar do lado de lá da dor mais profunda. há um sms sem valor, meramente simbólico, a imperfeição dos pêsames, tão humana, descascada de pudor.
é nesse exacto momento que balançamos entre o que temos de menos e o que não teremos nunca mais, um dia. temos sempre de menos o transitório sem perceber o valor do que é incondicional. inventar problemas? eles mesmos entram na nossa vida com a armadura dos sérios e a censura devida aos levianos.
os amigos, dois amigos, tão diferentes e tão iguais, tão desprotegidos e tão fraternos. como compensar as dádivas e o amor incondicional que me dão?
como suspender-lhes a dor e resgatá-los do lugar onde manda o sofrimento?

sábado

(fora) do armário

O armário é um sítio amplo e devidamente naftalizado para que não entrem bichos. Todas as peças se arrumam devidamente num armário confortável. O grande inconveniente dos armários são as portas. De vez em quando, abrem-se! Entra uma brisa de ar fresco, sente-se um fôlego de liberdade. Cá fora, o oxigénio é mais respirável embora propício a focos de infecção. O habitante do armário, experimentando o ar público, teme represálias bacterianas. Mune-se de coragem para se fazer ao mundo; ou volta para dentro enquanto a porta está entreaberta.
Lá dentro, mais cedo do que tarde, sucumbe à assepsia dos armários, quando não à tristeza do isolamento.
Dentro dos armários, fica-se tendencialmente quadrado, como os paralelipípedos que se pisam na rua, o espaço público de todas as identidades. Fora do armário, há correntes de ar, chuvas e coriscos, poeiras e malvadezas várias. Mas também há sol, mar e boa gente. Não é o lusco-fusco dos armários bafientos, mas a vida a cores em todas as dimensões.

Moral da história:
Ninguém é inteiro, enquanto esconde ou contradiz uma parte de si mesm@.
Ninguém consegue iludir-se o tempo todo.
Ninguém é feliz escondendo-se.
Ninguém é feliz sozinho.
Ninguém pode fazer por outrem, aquilo que esse outro recusa.
E se, quem pode, não quer mudar, nada adianta escudar-se em terceiros.

sexta-feira

lua nova

gostar é simples, descomprometido, gostoso, malvado. havia umas escadas que trepamos de mão dada. fomos dar a um sítio escuro e vazio que enchemos com pressa. exteriorizamos a pele, com os trapos para o chão. não estava frio, nem dia, ainda não era verão. não foi brusco, nem suave aquele abraço em que nos mergulhámos. um beijo longo espalhou-se com sofreguidão. humedecemos para lá dos lábios juntos e logo ali me tomaste inteira. tentei não machucar a frágil textura do teu corpo. em cada milímetro da tua pele deslizava o meu desejo. eu não sabia como te tomar. nunca sei. nesse preciso instante, desliguei o complexómetro e entrei em comando remoto. algures afrodite havia de me guiar. tudo o que se passou depois surtiu efeito. suor, músculos, insónia e aconchego. um disparate de fluidos e gestos sem plafond. e cada vez que me lembro de ti, oscilo. entre a ternura da delicada figura e a dimensão do rombo no meu coração.

quinta-feira

saravá

a gente passa a vida a repetir-se
os meus amores-perfeitos são de uma inusitada ética
murcham, arrebitam, sorriem e nunca mais acabam

do amor desastrado, e dos golpes de sorte, aporto num cais
ela entra de mansinho, quero até nunca mais
tenho o escrúpulo do ralenti, jeito de amadora, toque de veludo

sou absolutamente exclusivista, introspectiva, devotada
ninguém mais entende este gostar de alguém
há uma estética parva a atirar para o arco-íris
festejo um dia de chuva e todo o sol escaldante
queimo o cérebro em conjecturas, risco lembranças a traço de lápis

a estética das amantes é antagónica ao que supõem delas
e toda a pressa resulta em precipício
um princípio apenas, para um voo divino
peço proteção aos planetas e aos mares
tudo me revolve as entranhas
mas a alegria é mesmo um destino

sexta-feira

dois anos, cinco meses, uns dias e algumas horas depois.


tudo mudou de forma muda, mais perto do antes, mais perto do que sou.
decisões que custam horrores. horrores decididos sem custo.
a vida dá voltas e encaixa, dois passos adiante, mais perto do mar -
falta tempo para o contemplar.


de resto, se arrependimento matasse a vida era eterna.