sábado

de passagem

estou no posto de saúde, na polícia, dentro e fora de grades,
estou na escola, no restaurante, na arcada da praça,
estou no escritório, a limpar o pó de madrugada, a fazer relatórios fora de horas, 
estou na estrada, em transito de autocarro, em viagem acelerada, à procura de nada,
estou no palco, à espera do público, sem subsídio, desejando que me amem,
estou no hospital, a abrir corações, a dissecar passados, a segurar a morte,
estou no alpendre, a saborear o vento quente, a escutar a chuva, a desejar o horizonte,
estou no cais, à chegada, à partida, como carga, sem mais



o (m)eu não é um lugar seguro


quarta-feira

há lá coisa mais triste que descobrir que nos enganamos repetidamente?
um dia descubro que tudo faz um sentido desajustado. não é preciso ter sonhos, nem carreira, nem objetivos de vida - sim, nunca os tive. um dia acordas de uma noite que não dormiste e perguntas-te se vale a pena arrastar uma parceria por umas migalhas de afeto, sabendo embora a resposta de antemão. um dia, seguras com força as lágrimas e tentas focar-te nas coisas práticas e reais: escrevinhas listas de tarefas e pendentes para dar vazão nos próximos dias, reflexionas sobre estratégias de fuga da confusão em que se tornou a vida doméstica e a outra, e projetas adelante da vida quotidiana. mudar de casa, mudar de gastos, mudar de hábitos, mudar de cidade, vender tecnologia, doar livros, arranjar destino para a roupa. não gastar mais que uma semana na partição dos bens, receber colo, receber abraços, e chorar até que tudo passe e a tendência para a autocensura se dilua no pragmatismo das soluções. por último, deixar os auto-juizos a marinar num baú perdido, na convicção de que como habitualmente, por melhor intencionada que esteja, nunca terei tempo de arrumar as minhas tralhas todas, antes de partir...