terça-feira

foi há muitos anos. a violência, sob a forma de prepotência(de um poder paternal) e depois com gestos de dor, levou-a a afastar-se. vários homens depois, a cena repetiu-se longa e pausadamente- e ela a descrer. até que um dia, na exacerbação dos gestos e dos gritos e das ameaças, ela disse em si para consigo que se afastava daquele mal.
mas por muito que o tempo passe, os comportamentos replicam-se como sequelas de um filme podre.
a violência - conta ela - começa com chamada de atenção porque não estamos atentas ao nosso amor, não cumprimos as tarefas domésticas, centramo-nos no trabalho, ou nos outros, ou porque nos vestimos desadequadamente, ou porque não mandamos mensagens, ou mandamos demais, ou porque...
a violência nas relações de afecto começa pelo egoísmo da pessoa agressora, autocentrada, controladora, possivelmente carente, possivelmente muito senhora de si, e acaba na despersonalização da pessoa vítima. "eu exijo a tua atenção mas não me interessa assim tanto a tua vida" ou " ama-me e elogia-me, venera-me até, mas pouco me importa se te dou um abraço quando precisas". uma relação de poder desigual numa relação de caracter amoroso é uma violência sobre ser-se pessoa.
na melhor das hipóteses, há um momento em que resgatamos o amor igualitário ou recuperamos a pessoa livre que somos.

domingo

há muitos, muitos anos,  Simone, a brasileira, cantava "começar de novo, e contar comigo, vai valer a pena...".
o resto pouco importa porque é uma cantiga, e as cantigas é suposto rimarem.
a cantiga virou um clássico, certamente por ter estado na banda sonora de uma das primeiras e raras séries feministas da televisão... tenho saudades confesso dessa revelação audiovisual que foi Malu Mulher.
a cantiga. lembrei-me dela uma dúzia de anos depois de me ter lembrado dela com o mesmo sentimento. há coisas que acontecem contra nossa vontade e é estupido contraria-las. e acontecem recorrentemente. como se a mãe-natureza nos quisesse estimular os neurónios a não seguir os mesmos caminhos, na esperança que nos levem a um sítio maduro e tranquilo. provavelmente nenhum caminho nos leva lá, se calhar o lugar nem existe, se calhar já foi tomado, se calhar destruímo-lo sem querer. se calhar havemos de o ver de longe, como a criança que desejava uma casa de brincar e nunca a teve, e passa a vida a arranjar casas a pensar que será a sério.

faço de conta que ele sou eu e a cantiga tem o mesmo desfecho


sábado

voltamos aos lugares onde fomos felizes ou desesperad@s porque sobrevivemos. na imperfeição de tudo há um certo sentido. perceber que algo os ultrapassa, sem que seja perceptível, desconstrói-nos a paciência.
e de novo tecemos mil fios para dar um sentido perdido ao quotidiano. e nesse mister perdemos o sem nexo da procura, para nos enredarmos na teia que nós mesm@s construimos.
se soubesse fazê lo, derrubaria os muros das minhas convicções, para deixar-me ir na corrente do desleixo e não me consumir com o rigor mortal desta vida gregária.
às vezes, precisava de não ser tão severa comigo e muito mais intolerante com outr@s. uma pitada de sonsice aqui, um qb de alienação ali e umas gramas de dramaturgia, pois... não é a vida um palco?

terça-feira


Gosto do trabalho, e quando não gosto nota-se e não é nada bom. Mas não sou obcecada pelo trabalho, simplesmente gosto de fazer coisas, bem feitas, que façam sentido e se possível um sentido especial. Conheci pessoas que são obsessivas com  o trabalho,sim,  extraordinariamente obsessivas, cada uma com os seus próprios factores de motivação. Para umas a felicidade do trabalho prolonga-se, noutras acaba por traí-las. Eu, eu, simplesmente contento-me em ter trabalho e  fazê-lo bem, e isso implica com gosto. Como diz alguém, “sempre em acção”… mas, na verdade, tem dias…
Acontece é que faço muitas coisas sequencialmente, quase ao mesmo tempo – acudo às pessoas amigas, preocupo-me com os progenitores, acalento a descendência e sim, gosto de passar bons momentos com o meu amor. Sem cobranças patológicas, sem obsessões de veneração, sem desaguisados inúteis… tentando, pelo menos. Mas nada disso tem o mesmo prazer se não consigo ter os meus próprios momentos a sós comigo, onde crio e invento e arrumo e procrastino os mil-afazeres que tenho entre-mãos  Agora escrevo este texto, saltito no facebook gerindo páginas, elaboro um plano de sessão e combino uma entrevista…
E o trabalho, sim, o trabalho. O nazismo dizia que “o trabalho liberta” e a desempregada do Portugal de agora concede que está demasiado liberta do trabalho. Ironias da vida!
Quem já passou pela vontade de querer trabalho e não o ter, valoriza o pouco que tem e passa os dias a escarafunchar possibilidades remotas de trabalho futuro, precário, ocasional, temporário, efémero, rude, intelectual, inovador, rotineiro, na medida do sustento das necessidades básicas. 
E, é verdade… quem nunca experienciou o desemprego,  não pode ter a noção da fragilidade dos dias que vivemos, tão tortos de sem-direitos.