terça-feira

dantes, se estudasses afincadamente ou assim-assim, tinhas um emprego esfalfado, feito de recibos verdes, avenças quando deus quer, bolsas de tirocínio, e um dia a vida encarreirava-se
agora, mesmo que estudes esfalfadamente, até podes ter diploma de médico, de leis ou de engenharia, mas vais sair com ele à cata de uma caixa registadora onde não vasculhem as habilitações, para conseguires trabalho.
e com um bocado de sorte grande, passas umas dúzias de horas a arrumar mercearias em paletes e estas no armazém, para trazeres um ordenado mínimo regular. e a vida descarrila nesse caminho.

dantes, havia uma coisa que te protegia na vida laboral, chamada leis do trabalho, e outra coisa que funcionava, chamada inspeção
e havia uma entidade pouco ruidosa mas que servia para pôr patrões em sentido - chamava-se sindicato - que impunha uma coisa chamada contrato coletivo de trabalho, e nele fazias finca pé.

agora, contas os dias que faltam até ao fim do mês para saberes quantos salários em atraso faltam para ires até ao iefp nas apresentações quinzenais - obrigação que partilhas com os suspeitos de crime que cumprem termo de identidade e residência.
não há a mais pequena expectativa de que algo mude: à boca cheia todos te aconselham a que te mudes - que emigres, pois.

no rame-rame dos dias, não sei como ainda não espetaste um balde de tinta no senhor desgoverno.

segunda-feira

olhei para o céu,
esta(va) estrelado,
não vi deus nem menino,
senti-me em mísero estado.

ps - amanhã, certamente, não chove

quinta-feira

uma tristeza pequenina, persistente, incómoda, como a chuva morriña.
um vazio sem norte, como o desgosto profundo
uma incerteza fina, como o golpe de navalha

o tempo também nos dá isso: a imobilidade no pensar, nem sequer é reflexão, ponderação,... é só mesmo não saber o que pensar, como agir.
e outra vez, a tristeza morriña e o vazio a pesar pesado.


porque me apetece dizer isto, com Drummond

Definitivo, como tudo o que é simples: nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram. Por que sofremos tanto por amor? O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz. Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade. Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar. Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender. Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar. Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!! A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional." (Carlos Drummond de Andrade)