num dia, há 40 graus para derreter em qualquer lugar. uma marcha de galdérias, um desfile de ciclistas nus, uma festa de gays e lésbicas. milhões de pessoas nas praias ao sol tórrido, transportes colectivos apinhados, carros de família em pára-arranca doloroso. num dia, há notícias que não vemos, nem lemos, nem queremos saber. a noite é do demo, na alegria e na bebedeira, no deve e haver de amor-sei-lá-se-é. num dia, somos felizes. no outro acordamos tristes de um sono leve e agitado, e nada do que possámos pensar nos alívia a dor. e como não há dores perfeitas, há alguém que nos liga 'do outro lado', e alguém que nos liga deste a falar do lado de lá da dor mais profunda. há um sms sem valor, meramente simbólico, a imperfeição dos pêsames, tão humana, descascada de pudor.
é nesse exacto momento que balançamos entre o que temos de menos e o que não teremos nunca mais, um dia. temos sempre de menos o transitório sem perceber o valor do que é incondicional. inventar problemas? eles mesmos entram na nossa vida com a armadura dos sérios e a censura devida aos levianos.
os amigos, dois amigos, tão diferentes e tão iguais, tão desprotegidos e tão fraternos. como compensar as dádivas e o amor incondicional que me dão?
como suspender-lhes a dor e resgatá-los do lugar onde manda o sofrimento?
AS MULHERES TÊM TODAS UM PONTO DO CORPO, UM RECANTO DA CIDADE, UMA HORA DO DIA, QUE SÃO NELAS COMO QUE UMA PORTA SECRETA, PELA QUAL PODEM SAIR DE SI PRÓPRIAS, DA SUA TIMIDEZ, E PENETRAR EM TODA A ESPÉCIE DE LOUCURAS, GRAVES OU VENIAIS.[Erik Orsenna]
domingo
sábado
(fora) do armário
O armário é um sítio amplo e devidamente naftalizado para que não entrem bichos. Todas as peças se arrumam devidamente num armário confortável. O grande inconveniente dos armários são as portas. De vez em quando, abrem-se! Entra uma brisa de ar fresco, sente-se um fôlego de liberdade. Cá fora, o oxigénio é mais respirável embora propício a focos de infecção. O habitante do armário, experimentando o ar público, teme represálias bacterianas. Mune-se de coragem para se fazer ao mundo; ou volta para dentro enquanto a porta está entreaberta.
Lá dentro, mais cedo do que tarde, sucumbe à assepsia dos armários, quando não à tristeza do isolamento.
Dentro dos armários, fica-se tendencialmente quadrado, como os paralelipípedos que se pisam na rua, o espaço público de todas as identidades. Fora do armário, há correntes de ar, chuvas e coriscos, poeiras e malvadezas várias. Mas também há sol, mar e boa gente. Não é o lusco-fusco dos armários bafientos, mas a vida a cores em todas as dimensões.
Moral da história:
Ninguém é inteiro, enquanto esconde ou contradiz uma parte de si mesm@.
Ninguém consegue iludir-se o tempo todo.
Ninguém é feliz escondendo-se.
Ninguém é feliz sozinho.
Ninguém pode fazer por outrem, aquilo que esse outro recusa.
E se, quem pode, não quer mudar, nada adianta escudar-se em terceiros.
Lá dentro, mais cedo do que tarde, sucumbe à assepsia dos armários, quando não à tristeza do isolamento.
Dentro dos armários, fica-se tendencialmente quadrado, como os paralelipípedos que se pisam na rua, o espaço público de todas as identidades. Fora do armário, há correntes de ar, chuvas e coriscos, poeiras e malvadezas várias. Mas também há sol, mar e boa gente. Não é o lusco-fusco dos armários bafientos, mas a vida a cores em todas as dimensões.
Moral da história:
Ninguém é inteiro, enquanto esconde ou contradiz uma parte de si mesm@.
Ninguém consegue iludir-se o tempo todo.
Ninguém é feliz escondendo-se.
Ninguém é feliz sozinho.
Ninguém pode fazer por outrem, aquilo que esse outro recusa.
E se, quem pode, não quer mudar, nada adianta escudar-se em terceiros.
sexta-feira
lua nova
gostar é simples, descomprometido, gostoso, malvado. havia umas escadas que trepamos de mão dada. fomos dar a um sítio escuro e vazio que enchemos com pressa. exteriorizamos a pele, com os trapos para o chão. não estava frio, nem dia, ainda não era verão. não foi brusco, nem suave aquele abraço em que nos mergulhámos. um beijo longo espalhou-se com sofreguidão. humedecemos para lá dos lábios juntos e logo ali me tomaste inteira. tentei não machucar a frágil textura do teu corpo. em cada milímetro da tua pele deslizava o meu desejo. eu não sabia como te tomar. nunca sei. nesse preciso instante, desliguei o complexómetro e entrei em comando remoto. algures afrodite havia de me guiar. tudo o que se passou depois surtiu efeito. suor, músculos, insónia e aconchego. um disparate de fluidos e gestos sem plafond. e cada vez que me lembro de ti, oscilo. entre a ternura da delicada figura e a dimensão do rombo no meu coração.
quinta-feira
saravá
a gente passa a vida a repetir-se
os meus amores-perfeitos são de uma inusitada ética
murcham, arrebitam, sorriem e nunca mais acabam
do amor desastrado, e dos golpes de sorte, aporto num cais
ela entra de mansinho, quero até nunca mais
tenho o escrúpulo do ralenti, jeito de amadora, toque de veludo
sou absolutamente exclusivista, introspectiva, devotada
ninguém mais entende este gostar de alguém
há uma estética parva a atirar para o arco-íris
festejo um dia de chuva e todo o sol escaldante
queimo o cérebro em conjecturas, risco lembranças a traço de lápis
a estética das amantes é antagónica ao que supõem delas
e toda a pressa resulta em precipício
um princípio apenas, para um voo divino
peço proteção aos planetas e aos mares
tudo me revolve as entranhas
mas a alegria é mesmo um destino
os meus amores-perfeitos são de uma inusitada ética
murcham, arrebitam, sorriem e nunca mais acabam
do amor desastrado, e dos golpes de sorte, aporto num cais
ela entra de mansinho, quero até nunca mais
tenho o escrúpulo do ralenti, jeito de amadora, toque de veludo
sou absolutamente exclusivista, introspectiva, devotada
ninguém mais entende este gostar de alguém
há uma estética parva a atirar para o arco-íris
festejo um dia de chuva e todo o sol escaldante
queimo o cérebro em conjecturas, risco lembranças a traço de lápis
a estética das amantes é antagónica ao que supõem delas
e toda a pressa resulta em precipício
um princípio apenas, para um voo divino
peço proteção aos planetas e aos mares
tudo me revolve as entranhas
mas a alegria é mesmo um destino
sexta-feira
dois anos, cinco meses, uns dias e algumas horas depois.
tudo mudou de forma muda, mais perto do antes, mais perto do que sou.
decisões que custam horrores. horrores decididos sem custo.
a vida dá voltas e encaixa, dois passos adiante, mais perto do mar - falta tempo para o contemplar.
decisões que custam horrores. horrores decididos sem custo.
a vida dá voltas e encaixa, dois passos adiante, mais perto do mar - falta tempo para o contemplar.
de resto, se arrependimento matasse a vida era eterna.
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